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Desafios para uma Transição Energética Justa: entre produtividade, sustentabilidade e equidade

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Resolvi escrever sobre esse tema porque, ao apoiar o CEERT na fundação da nova área de Transição Justa, percebi o quanto o debate sobre energia ainda é dominado por vozes técnicas e econômicas, e o quanto faltam narrativas que coloquem justiça social, racial e territorial no centro da transição.

Escrever também sobre um setor em que atuei por cerca de cinco anos foi um exercício de revisitar aprendizados, tensões e contradições.


O setor energético é o coração do modelo de desenvolvimento global, mas também espelha as desigualdades que estruturam nossas cidades, territórios e corpos. No Brasil, essa ambiguidade é evidente: temos uma matriz predominantemente renovável (EPE, 2024), e ao mesmo tempo convivemos com pobreza energética, racismo ambiental e exclusão de territórios inteiros do direito à energia.

Em 2024, a geração elétrica nacional cresceu 10.853 MW, sendo 90% de fontes renováveis, com destaque para solar (51%) e eólica (39%) (ANEEL, 2025a). É um avanço impressionante, mas que ainda levanta uma pergunta essencial: quem se beneficia dessa transição — e quem fica para trás?


Segundo o Instituto Pólis (2023), 36% das famílias brasileiras gastam mais da metade da renda com energia elétrica e gás de cozinha. Enquanto isso, as ligações clandestinas — os conhecidos “gatos” — somam R$ 10 bilhões de prejuízo anual (ANEEL, 2025b).Por trás desses números está uma realidade: energia é um direito humano, não um luxo.


Produtividade: eficiência para quem?

Dentro do setor energético, o termo “produtividade” costuma ser tratado como sinônimo de eficiência técnica. No entanto, por trás dessa lógica aparentemente neutra, está uma visão tecnocrática e extrativista, que mede megawatts, mas ignora as vidas e territórios impactados.

Projetos de grande escala, como hidrelétricas na Amazônia, são frequentemente celebrados como símbolos de progresso, mesmo quando alagam terras, deslocam comunidades e alteram ecossistemas inteiros (GOMES, 2015).A produtividade, nesse caso, continua atrelada à acumulação e não à regeneração.

O desafio é epistemológico: redefinir produtividade a partir da justiça socioambiental.Como propõe Daniel Christian Wahl (2016), precisamos superar a lógica linear de crescimento e desenhar culturas regenerativas, em que a energia sirva para restaurar — e não explorar — a vida.


Produzir energia limpa não é o mesmo que produzir energia justa.A cadeia produtiva da transição “verde” ainda está marcada por mineração intensiva, emissões de carbono e precarização do trabalho (MOENS; BAUER, 2025).Mesmo no Brasil, trabalhadores de redes de distribuição enfrentam ondas de calor extremo e riscos à saúde (MOREIRA, 2024), e muitas usinas são instaladas sem consulta prévia às comunidades atingidas — especialmente indígenas e quilombolas.

A sustentabilidade, portanto, precisa deixar de ser um selo técnico e se tornar uma ética de cuidado.Isso significa olhar o ciclo completo da energia, desde a extração até o consumo, e incluir as dimensões sociais, trabalhistas e territoriais como parte inseparável do debate.


Equidade energética: energia como direito e reparação

A equidade energética, segundo o World Energy Trilemma Index (WORLD ENERGY COUNCIL, 2022), é um dos pilares fundamentais da sustentabilidade.Ela trata da garantia de acesso universal, com preços justos e participação democrática nas decisões do setor.

No Brasil, porém, a desigualdade é profunda: 60% das famílias das classes D e E convivem com contas atrasadas (INSTITUTO PÓLIS, 2023), e mulheres negras periféricas são as mais afetadas por cortes e tarifas abusivas (INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES, 2023).

Pensar equidade energética é também pensar reparação histórica.É reconhecer que a energia, assim como a terra e a moradia, foi estruturada sob uma base colonial e racializada. E que democratizar o acesso é redistribuir poder.


Apesar da expansão das fontes renováveis, a transição energética brasileira ainda é desigual em gênero, raça e classe.A Rede Brasileira de Mulheres na Energia Solar (MESol) mostra que 40% das empresas do setor não têm nenhuma mulher em seus quadros (PAN et al., 2022).E, mesmo quando estão presentes, ocupam funções administrativas: nos cargos de liderança, não passam de 20% (HALABI, 2022).

As mulheres negras ganham 37% a menos que homens brancos na mesma função (MME; GIZ, 2025).E 71% das trabalhadoras do setor relatam ter sofrido assédio sexual.Mais grave ainda: não há dados raciais públicos no setor energético brasileiro.Essa ausência revela o racismo estrutural que ainda organiza quem tem poder de decisão — e quem permanece invisível.

Como alerta Angela Davis (2016), o feminismo e as políticas de equidade frequentemente repetem a lógica da exclusão: primeiro as mulheres brancas, depois as negras, e só então os homens racializados. No setor energético, os corpos brancos e técnicos ainda lideram a transição — enquanto os corpos periféricos, indígenas e negros continuam sendo os mais impactados.


Há, no entanto, evidências de que equidade também gera produtividade.Segundo a McKinsey (2015), a igualdade de gênero poderia acrescentar US$ 850 bilhões à economia brasileira.A OIT (2019) mostrou que 60% das empresas com políticas de equidade aumentaram a produtividade, e empresas lideradas por mulheres registram 11% a mais de lucro (ACCENTURE, 2019).

Mas o valor mais importante não é econômico: é civilizatório.Uma transição energética justa precisa ser interseccional, democrática e radical — no sentido de ir à raiz do problema.Isso significa descarbonizar e descolonizar, reconhecendo a energia como bem comum, e garantindo que os territórios vulnerabilizados sejam protagonistas, não apenas beneficiários.

Como escrevo neste trabalho, “a potência de um novo modelo energético não está apenas na fonte limpa que alimenta os fios, mas nas vozes que decidem seu destino”.


Falar de transição energética é falar de memória e reparação.

Ao revisitar os cinco anos que vivi dentro desse setor, compreendi que a energia é mais do que infraestrutura: é símbolo de vida, cuidado e pertencimento.E que não haverá justiça energética sem justiça social, racial e territorial.

A transição só será justa quando as periferias, as mulheres negras, os povos indígenas e quilombolas tiverem poder de decidir sobre o futuro energético do país.Quando os fios que iluminam os centros também aquecerem as bordas.Quando a energia voltar a ser bem comum — e não privilégio.



Referências


ACCENTURE. Getting to Equal 2019: Creating a Culture That Drives Innovation. Dublin: Accenture, 2019.

AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL. Matriz elétrica teve aumento de 10,9 GW em 2024, maior expansão da série histórica. Brasília, DF: ANEEL, 2025a.

AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL. Expansão da matriz elétrica em 2024 chega a 10,3 GW e está prestes a quebrar recorde de crescimento anual. Brasília, DF: ANEEL, 2025b.

DAVIS, Angela. Mulher, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA – EPE. Balanço Energético Nacional 2024: ano base 2023. Rio de Janeiro: EPE, 2024.

GOMES, Eliane Cruz. Justiça ambiental e grandes empreendimentos do setor elétrico na Amazônia Paraense. Belém: UFPA, 2015.

HALABI, Catarina Cury. Gênero e poder no setor elétrico: desafios para a equidade nas organizações. Monografia (Graduação em Economia) – UFRJ, Rio de Janeiro, 2022.

INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Desigualdade racial: um cenário estrutural. Vitória: IJSN, 2023.

INSTITUTO PÓLIS. Justiça energética: pesquisa de opinião pública. São Paulo: Instituto Pólis, 2023.

MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA (MME); GIZ. Equidade de gênero no setor energético brasileiro: desafios e boas práticas. Brasília: MME; GIZ, 2025.

MOENS, Jonathan; BAUER, Thomas. Empresas ligadas à Enel são acusadas de grilagem. The Intercept Brasil, 24 fev. 2025.

MOREIRA, Anelize. 40°C na fábrica: como fica a saúde do trabalhador na era do calor extremo. Repórter Brasil, 18 jan. 2024.

PAN, Aline C. et al. Perspectivas de Resiliência de Gênero: Ações da Rede Brasileira de Mulheres na Energia Solar. In: IX Congresso Brasileiro de Energia Solar. Florianópolis: ABENS, 2022.

WAHL, Daniel Christian. Designing Regenerative Cultures. Axminster: Triarchy Press, 2016.

WORLD ENERGY COUNCIL. World Energy Trilemma Index 2022. Londres: WEC, 2022.

 
 
 

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